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Como qualquer pessoa que cresceu na década de 80, fui tremendamente marcado por dois músicos inesquecíveis que tornaram-se famosos naquele período: Cazuza e Renato Russo. Quis o destino (ou os cruéis `Deuses do Rock`) que ambos morressem jovens e vitimados pela mesma doença – deixando um legado que se tornaria cada vez mais conhecido, discutido e admirado. Compreensivelmente, tornaram-se mitos – e, infelizmente, Cazuza – O Tempo Não Pára, cinebiografia do ex-vocalista do Barão Vermelho, raramente consegue enxergar além da lenda e, com isso, frustra aqueles espectadores que esperavam conhecer um pouco mais do homem por trás do poeta. Quando o personagem-título canta, por exemplo,
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Dias sim, dias não
Eu vou sobrevivendo sem um arranhão
Da caridade de quem me detesta
o que ele está expressando? Quem viveu aquela época e testemunhou os preconceitos que o artista enfrentou por parte da mídia entende um pouco melhor seu lamento, mas o filme jamais aborda questões como esta: de acordo com a visão do longa, Cazuza foi cercado apenas por amor e compreensão – e, assim, sua ironia perde bastante o sentido.
Afinal, de onde vinha o ímpeto poético do ídolo? O que o movia? O roteiro, reescrito por vários profissionais e finalizado por Fernando Bonassi e Victor Navas, não se preocupa em investigar, optando por permanecer apenas na superfície de um indivíduo que, como poucos, merecia ser estudado com mais cuidado. Ainda assim, o filme eleva-se sobre tantos outros exemplares do gênero graças a dois fatores: a melancólica poesia de Cazuza, que pontua com precisão a narrativa, e a magistral performance do mineiro Daniel de Oliveira, que encontra-se (e este é o maior elogio que posso imaginar) no mesmo nível daquela oferecida por Val Kilmer em The Doors.
O teu futuro é duvidoso
Eu vejo grana, eu vejo dor
No paraíso perigoso
Que a palma da tua mão mostrou
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Acompanhando a trajetória de Cazuza desde o início da década de 80 (e sua entrada no Barão Vermelho), O Tempo Não Pára quase naufraga em sua primeira metade, quando, justamente por evitar aprofundar-se na alma de seu protagonista, acaba retratando-o como um jovem pretensioso e mimado que, fruto de um lar excessivamente liberal, dedica-se a ofender seus pais e à auto-destruição. O Cazuza visto neste segmento é antipático e detestável; um projeto unidimensional de `artista maldito`. Além disso, o fraco roteiro, em sua errônea ambição de retratar um mito, jamais permite que o personagem simplesmente `converse`: tudo o que sai da boca do compositor é lírico - como, se em vez de `falar`, Cazuza apenas `declamasse`.
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Por sorte, os cineastas Walter Carvalho e Sandra Werneck foram sábios na escolha do protagonista, já que Daniel de Oliveira consegue a proeza de transformar Cazuza em um jovem real apesar dos diálogos improváveis que é obrigado a recitar. Fazendo um belíssimo trabalho de voz e dicção (incluindo a sutil `língua presa` do cantor), Daniel gradualmente leva o espectador a substituir a imagem mental que tinha de Cazuza pela do ator que o interpreta – e, quando vemos imagens do verdadeiro poeta ao fim da projeção, somos surpreendidos pelo retrato preciso construído por seu jovem intérprete. Uma atuação corajosa, equilibrada, intensa e delicada.
Mentiras sinceras me interessam, me interessam...
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Porém, Daniel de Oliveira não é o único a merecer aplausos: destacando-se em um elenco homogêneo, Cadu Fávero cria um Frejat verossímil e complexo, aproveitando ao máximo o pouco tempo dedicado ao seu personagem. Da mesma forma, Emílio de Mello impressiona como Ezequiel Neves, oferecendo um necessário alívio cômico sem, com isso, transformar o personagem em uma caricatura. Finalmente, Reginaldo Farias e Marieta Severo comovem como João e Lucinha Araújo, pais de Cazuza. Severo, em especial, tem oportunidade de retratar toda a abnegação de uma mãe que teve a felicidade (ou infelicidade, dependendo do ponto de vista) de ter um filho que viveu tão intensamente – o que já era de se esperar, considerando-se que o filme é inspirado no livro da própria Lucinha.
Enquanto isso, o co-diretor Walter Carvalho (e gênio da direção de fotografia, como comprova Lavoura Arcaica) faz uma opção arriscada ao fugir do visual limpo e bonitinho e adotar uma fotografia granulada e com cores lavadas – escolha que se revela acertada ao emprestar tons apropriadamente melancólicos, tristes e decadentes à narrativa. Por outro lado, a decisão de Sandra Werneck de incluir imagens de arquivo na seqüência que enfoca o Rock in Rio 85 é infeliz, já que permite que o espectador perceba facilmente a trucagem, quebrando a ilusão e levando-o a se `lembrar` de que está vendo apenas uma recriação. Para completar, Cazuza – O Tempo Não Pára é imensamente prejudicado pela narração em off do personagem-título, que, além de pouco acrescentar ao filme, ainda diminui o impacto provocado pelas imagens, como se os cineastas não confiassem na força destas (algo que pode ser percebido no plano em que vemos o protagonista observando o mar e o pôr-do-sol – e que se enfraquece justamente em função da locução).
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem.
E, com isso, voltamos ao roteiro, que também falha ao desenvolver a narrativa aos saltos, sem a menor fluidez: em determinado instante, por exemplo, Cazuza descobre que está com AIDS e, segundos depois, já aparece em um hospital americano, magro e usando um par de óculos até então jamais vistos no filme. Da mesma forma, o roteiro deixa diversas (e graves) lacunas na trajetória do protagonista: como, por exemplo, o Barão Vermelho salta de um showzinho fracassado em um ginásio do interior para o mega-espetáculo durante o Rock in Rio? E mais: por que a decisão de Cazuza em tornar pública sua doença é citada apenas de passagem, quando, na realidade, representa um ato crucial de seus últimos anos? E o mais grave, praticamente imperdoável: como um filme sobre Cazuza pôde deixar de fora Ney Matogrosso (que sequer é mencionado), uma das figuras mais importantes na vida do poeta?
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Ganhando mais força em seu segundo ato, que se concentra na decadência física de Cazuza (e durante a qual Daniel de Oliveira mais uma vez brilha, oferecendo uma atuação mediúnica), O Tempo Não Pára merece mais alguns pontos por abordar o preconceito sofrido pelas vítimas da doença em uma época na qual muitos acreditavam que tocar um soropositivo era o bastante para se contaminar.
O meu tesão agora é risco de vida
Meu sex and drugs não têm nenhum rock`n`roll
Eu vou pagar a conta do analista
Pra nunca mais ter que saber quem eu sou
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Ainda que merecesse um tratamento mais aprofundado, Cazuza prova sua imortalidade como artista ao salvar esta cinebiografia com sua poesia inesquecível – e, desta forma, apresentando-se a toda uma geração que talvez não o valorize como deveria (neste sentido, Renato Russo ainda é o mais popular entre os jovens que não testemunharam aquela época). E, se O Tempo Não Pára servir para conduzi-lo ao coração e às mentes de novos fãs, já terá feito um grande serviço ao rock nacional.
Observação: Bem que os diretores poderiam ter demonstrando um pouco mais de capricho ao sincronizar os créditos finais e a música que os acompanha. É triste ver uma composição tão bela ser subitamente interrompida depois que os letreiros acabam de correr a tela...
Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não pára
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